“Ele jamais abriu mão da própria identidade durante toda a carreira”. A avaliação é a do jornalista carioca Julio Moura, autor do livro Pelas ruas que andei - Uma biografia de Alceu Valença (Cepe Editora), de 562 páginas. A obra sobre o artista de múltiplas influências será lançada nesta terça-feira (27), às 19h, no Paço do Frevo, no Recife.
O evento terá a presença do biógrafo e do biografado, com acesso livre. Alceu, que vai completar 77 anos de idade na semana que vem (dia 1º), tem carreira marcada pela resistência e manutenção das raízes nordestinas. Ele é aclamado em todo o país e internacionalmente.
A missão de contar uma história de vida e de mais de 50 anos de carreira ficou para o jornalista, que é assessor de imprensa do artista desde 2009. “Posso dizer que, desde então, penso em fazer a biografia sobre ele”, confessa Julio.
Ele garante que Alceu deixou o escritor à vontade para fazer um mergulho independente e distanciado. “Não pediu para ler nada antes”, disse o escritor em entrevista à Agência Brasil.
Julio explica que queria evitar um “livro de memórias”. Por isso, tinha certeza de que precisaria de certo afastamento em prol da qualidade do livro. Foram dois anos de escrita, principalmente durante a pandemia.
A investigação da história de Alceu foi antes de escrever e ganhou fôlego pelas conversas frequentes, pelas viagens a São Bento do Una (PE), cidade em que o artista nasceu, e para Garanhuns (PE) e Recife para traçar o complexo mosaico de influências musicais e de vida.
“Eu tive impressões confirmadas. Ele sempre teve uma obstinação e determinação muito grandes. Por exemplo, ele participou de festivais de música importantes e não ganhou. Mas não desistiu”, revela o escritor.
Outra face menos comentada do artista e que, segundo Júlio, ilustra a obstinação de Alceu, foi a realização do filme A luneta do tempo. “Foi um filme que Alceu escreveu durante 10 anos e filmou no agreste de Pernambuco por três anos. Uma história do circo e cangaço e eu participei intensivamente”, recorda.
Julio testemunha que Alceu não para nunca. “Ele é muito intenso”, diz. Como um carnaval permanente. Influenciado pelas raízes do violeiro, da banda de pífano, do caboclinho, do baião, do frevo no Recife, do maracatu. “Ele é um dos artistas que melhor representa essa diversidade que o Nordeste tem”, acredita o biógrafo. Ele diz, ainda, que faltam biografias sobre artistas nordestinos da geração de Valença.
O saber de Alceu gera efeitos artísticos em diferentes campos. “A música Anunciação, por exemplo, é ouvida e cantada desde 1983 (há 40 anos)”. Foi cantada em momentos marcantes, como do pedido pelas Diretas Já, a partir de 1984, em que o artista se engajou. A música virou também um hino informal das jogadoras da Seleção Brasileira Feminina de Futebol, que vai disputar a Copa do Mundo.
Não são apenas pelos meios tradicionais que Alceu consegue repercussão. O escritor verificou que a internet auxiliou a garantir visibilidade para a obra do compositor. “A música La belle de jour tem mais de 140 milhões de visualizações no Youtube. É impressionante. Não encontramos isso nem no Paul McCartney, ou Freddie Mercury, ou Stevie Wonder”, observa.
Pelas ruas que andei, nome da canção que é o título do livro, é para Júlio a música mais marcante. Funciona como metáfora de toda a caminhada do artista no Nordeste e depois no Rio de Janeiro.
Para Alceu Valença, Julio Moura era a pessoa mais indicada para escrever a biografia. O artista garante que deixou o escritor e amigo muito à vontade para poder fazer o livro.
“Mesmo porque era a pessoa mesmo mais indicada para isso. Há muito tempo em que ele trabalha com a gente, que viaja comigo e conheceu tudo o que aconteceu na minha vida”, afirmou Alceu em entrevista à Agência Brasil. “Ele conheceu a casa onde eu morei, parentes meus. Ele conheceu a feira de São Bento do Uma, que serviu de base para a minha música, do xote, do xaxado, do baião”.
Alceu destaca que Julio esmiuçou as influências das outras cidades brasileiras em que ele viveu, como Garanhuns, Recife, Olinda e Rio de Janeiro.
O cantor destaca que a biografia revela formação prioritária dele, que é de São Bento do Una e da Fazenda Riachão, onde nasceu. “A cultura do sertão profundo é a cultura que inspirou e fez com que existisse o Gonzagão. Eu sou da mesma cultura influenciado também por Gonzagão”, opina.
No Recife, Alceu viveu na rua dos Palmares, um verdadeiro caldeirão cultural de influências para ele. Moravam lá o compositor Carlos Pena Filho e o grande Nelson Ferreira (o maestro e compositor de frevo). “Por lá, passavam os maracatus de origem africana. E os blocos indígenas, os caboclinhos. O frevo de bloco, o frevo de rua, o frevo canção”.
Alceu Valença destaca que o escritor conheceu todos os amigos dele de Olinda. “Ele tem uma memória incrível. Cada vez que eu passava por Olinda, eu ia me lembrando de alguma coisa. E ele cuidou para estar tudo ali no livro”, observa.
Além do lançamento desta terça-feira, estão programados outros dois lançamentos, um no Rio de Janeiro (Livraria Travessa do Shopping Leblon), no dia 25 de julho, e em São Paulo (Itaú Cultural) no dia 27 do mês que vem.
A obra tem versões impressa, digital e audiolivro (disponível em audiolivro.art.br), adaptado como condições de acessibilidade e recursos extras para os fãs do formato.
Lançamento do livro Pelas ruas que andei - Uma biografia de Alceu Valença (Cepe Editora)
Preço: R$ 70 (livro impresso); R$ 35 (e-book); 49,90 (compra do audiolivro); R$ 20 (assinatura do audiolivro)
Recife
Quando: 27 de junho
Onde: Paço do Frevo (Praça do Arsenal da Marinha, s/n, Recife)
Horário: 19h
Acesso gratuito
Alceu Valença fala
à Agência Brasil
sobre vida e obra
Filosofia e literatura. Sofisticado e popular. Regional e universal. A obra de Alceu Valença, que completa 77 anos na semana que vem, mistura elementos que fazem do músico pernambucano um artista consagrado. Na semana de lançamento da primeira biografia, obra do escritor Julio Moura, o multiartista reflete sobre as principais influências profissionais e de vida. A raiz em São Bento do Una, no interior pernambucano, é uma chave importante de leitura de sua poesia em instrumentos, incluindo sua voz poderosa e arretada.
Agência Brasil - Como compreender todas as influências de sua obra?
Alceu Valença - Eu não vou trair a minha música e a minha maneira de pensar. A minha influência passa pela cultura que advém da África, dos indígenas e da Península Ibérica. Eu não sou anglófono, apesar de entender que musicalmente eles são ótimos. Mas eu não tenho nada a ver com isso. Eu só saio fazendo a minha coisa o tempo todo, fazendo do jeito que eu quero, da maneira que eu quero e naquilo que eu acredito.
Agência Brasil - A sociedade incorporou sua música em diferentes momentos, como Anunciação, por exemplo, cantada para diferentes objetivos. Você vê com bons olhos?
Alceu Valença - Anunciação é uma obra aberta. Quando uma criança canta, ela está pensando em algo. Quando alguém canta pelo amor perdido, é outro olhar. É uma música cheia de esperança.
Agência Brasil - Sua obra mistura elementos populares e de sofisticação. Como você vê isso?
Alceu Valença - Pensando assim, eu fui uma pessoa que eu li muito. Eu adorava filosofia. Cada pessoa tem a sua circunstância. Como diz o espanhol Ortega Y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”. Ninguém vai ter a mesma circunstância do que eu. Eu acredito na coisa que faço. Sempre acreditei. Não tenho essa história de ficar orgulhoso. Nem em sucesso que sobe à cabeça.
Agência Brasil - Alguma música significa mais para você?
Alceu Valença - Na verdade, não. A minha preferida é o conjunto da obra. Cada música tem o seu momento. Pelas ruas que andei é o reflexo do Alceu Valença que morou no Recife. Anunciação é uma música que surgiu em Olinda, também no meu caminhar. Eu estava com uma flauta e comecei a aprender sozinho. Um dia eu fui para a rua e, de repente, comecei a tocar. Nem sabia que estava tocando uma música. Alguém falou que era uma música linda. Eu peguei um papel e escrevi a música. Eu estava também inspirado no meu passeio por Olinda, aonde eu saí pela rua. Fui no Mosteiro de São Bento e depois voltei pra casa. Quando vou fazer uma música, eu não fico pensando o que é que eu estou fazendo.
Agência Brasil - Mas o que inspira esse intelecto?
Alceu Valença - Eu lia Fernando Pessoa com 16 anos. Eça de Queiroz eu lia também. Vamos dizer que Carlos Drummond de Andrade foi outro que me influenciou e me comoveu. Como diz (o filósofo) José Ortega Y Gasset, eu sou eu e minhas circunstâncias. As minhas circunstâncias todas estão dentro da minha obra. Tudo que eu vivenciei está dentro do meu trabalho e sempre esteve.
Agência Brasil - A invasão da tecnologia é algo bom ou ruim?
É bom para que todo mundo se expresse. Só que, como profissão, pode virar uma outra coisa.
Agência Brasil - Mas a inteligência artificial é um risco?
Alceu Valença - Eu já falava isso antes (sobre os riscos). (Será possível) ter uma entrevista, que peguem a minha voz. Na música, (pode ter) plágio. Só que é um plágio muito bem feito. A inteligência artificial pode ser um grande problema.
Agência Brasil – Como você analisa as redes sociais?
Eu tenho muito medo dessa questão das fake news [informações falsas]. É [algo] muito complicado. Você pode fazer uma edição e lascar meu nome. Acontece também dentro da internet uma coisa chamada viral. Eu notei uma coisa interessante analisando depois. Eu estava lá no Rio de Janeiro (na época das Olimpíadas) na frente de uma padaria. Eu passei com a minha mulher para o outro lado. De repente, eu vi o som de Anunciação. Eu cantei na hora. Deu um viral. Não houve ensaio nenhum. Nada. [Por outro lado], quando cheguei em Portugal fazendo show um ano depois, teve um momento que a gente foi gravar com equipamentos muito bons com câmeras maravilhosas. Gravamos uma música, Coração bobo. E aí botaram na rede social e não aconteceu nada. Entendeu? Coração Bobo estava muito mais bem gravada. E a mal gravada que deu mais repercussão.
Fonte: Agência Brasil
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